segunda-feira, 24 de março de 2014

Nymphomaniac (2014 - Volumes I e II)


Dependendo do ponto de vista, podemos enxergar Lars Von Trier como um incompreendido. Como um excêntrico. Como muito egocêntrico. Ou como um gênio. Não vou me ater a nenhum destes termos, mas numa coisa este diretor tem destreza: impressionar. Não é à toa que é dono de um dos cinemas mais polêmicos da atualidade e que acumula muitos comentários controversos a respeito de suas obras - e algumas besteiras sobre, também - criando debates únicos sobre conotação, que fritam a cabeça de qualquer admirador do cinema, assim como eu.
A primeira parte do filme começa como um choque, e mais literalmente densa, impossível: uma tela preta por cerca de um minuto, se não me engano, cria a tensão ideal que vai acompanhar o dorso dos espectadores até o fim (ou meio) da trama. É exatamente isso, uma edição pobre de ritmo, pouco atrativa, que eu chamaria de "O Grito de um Ego" por parte de Von Trier, mas que nada mais é do que algo crucial para que o resto do conceito seja extremamente eficaz.
Eu diria que o maior pecado desta produção é o fato de, além de ter sido separada da segunda parte, parecer que muitos diálogos foram artificialmente interpretados pelos atores (Stellan Skarsgård e Charlotte Gainsbourg). Nos momentos iniciais da obra, o roteiro com coincidências desconfortáveis e deixas baratas, empobrecem as conversas, também, forçando certos padrões pouco críveis, mas o intenso uso de associações e alegorias, confundem e turvam o entendimento de pontos simples da peça, e o julgamento de o que é importante ou não fica ainda mais difícil para os marinheiros de primeira viagem, causando o verdadeiro desconforto e "pecado do filme" ao lado "pipoca" da plateia. Enfim, Lars Von Trier tem sua própria vaidade e talvez quisesse fazer exatamente como fez. Segregar a plateia com tantas metáforas também pode ter sido intencional. Vai saber, não é? Afinal é fácil chamar atenção com um filme sobre sexo e com cenas explícitas, mas muito provavelmente mais da metade do público que foi assistir a esta sessão esperando uma ode à luxúria não apareceu para saber como tudo termina.
A segunda parte do filme é mais intensa. Quem se arrependeu de ter posto os pés numa sala de cinema para assistir o Volume I perdeu uma ideia muito mais digerível no Volume II. É quando Joe (Charlotte Gainsbourg) deixa de ser introdutória e prolixa e começa a vivenciar intensamente todas as mazelas de ser uma ninfomaníaca.
Não bastasse sua compulsão, ganha o pior presente para quem é alucinado pelo ato sexual: engravida. Mostra-se incapaz de gerir seu lar, de administrar sua vida. Tem experiências selvagens e doentias. Tenta um grupo de ajuda. Nada funciona. Joe está em um momento de sua própria vida em que se vê dentro de uma cova que só fica cada vez mais funda, e o casto e culto Seligman (Stellan Skarsgård) se compadece desta ira com a ditadura contemporânea e comenta um detalhe que para mim é o ponto alto do filme: seria estranho se um homem tivesse passado por tudo que Joe passou? E talvez se ela fosse homem, seria incomum e espantoso a quantidade de experiências sexuais? E toda a aventura audaz e ousada, seria tão mal julgada? Ou tudo faria parte de uma "personalidade forte" vinda de um homem? Além desta crítica ao mundo machista em que vivemos - que é muito mais profunda e tocante do que a minha retórica, diga-se de passagem - há grande metafísica entranhada neste filme. Sim, e como há. Me reservo a ser o mais breve possível para não estragar tanto o que só a experiência de assistir à obra pode trazer, mas é de muito valor doar seu tempo para assistir a este cinema feito por Von Trier, que é muito subjetivo e literário. Não apenas lento e cansativo, que com certeza é, mas que pode ser bastante conclusivo e nos tragar ao tão poético limite da sensibilidade, esquecido na correria do nosso dia-a-dia, fazendo-nos apreciar a arte feita na sua essência, e com toda a minúcia que puder ter a seu dispor.
É um grande filme, gostei muito de ter assistido, principalmente o final de cada uma das partes, que é arrebatador, mas não é um programa que você deva fazer para esquecer os problemas, para passar o tempo. É necessário concentração para aceitar o roteiro e todo o conceito, coisa que estamos desacostumados a fazer por conta dos "entendedores de cinema" de hoje em dia. Uma vez ouvi alguém dizer: "Você não dá uma obra de arte para um jornalista criticar. Este é o grande problema da crítica contemporânea: temos jornalistas, aspirantes a críticos de arte, que a julgam como uma peça de entretenimento, matando a interpretação com tanta objetividade.". Eu concordo. Apesar de eu estar tanto no mundo da arte quanto no mundo do jornalismo, filmes como esse jamais deveriam ser encarados por uma plateia com regras tão estreitas, com diretrizes tão podadas, ou então todo o esforço de uma visão além do usual se perde, e se transforma em cinza.