quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Trash - A Esperança Vem do Lixo (2014)


Feito sob encomenda, eu diria. Uma soma perfeita de virtude mais pobreza que dá o tom romântico certo de uma obra bem previsível, mas de grande qualidade. O filme funciona graças aos detalhes escolhidos para compor a trama, mas mesmo saltando aos olhos de quem conhece bem a realidade do universo brasileiro, incomoda com a quantidade de coincidências no roteiro. Ainda assim, é uma ótima pedida.
A estória toda gira em torno de um mistério sobre um código secreto escondido em uma carteira. João Ângelo (Wagner Moura) por algum motivo criptografou uma mensagem que dá as coordenadas para um tesouro escondido, mas é justamente aí que existe o maior erro de todo o longa: João não avisa a ninguém sobre o código, ou como desvendá-lo, e simplesmente, antes de morrer - relaxem, isto acontece nos primeiros 10 minutos do filme, atira a carteira por uma sacada, fazendo com que caia, coincidentemente, em um caminhão passante de lixo. E se a carteira cai no esgoto? E se alguém "não-nobre" na rua a pega? Bom, não vou me ater a isto, porque realmente, depois que eu parei para refletir, começou a me incomodar muito o excesso de lirismo em alguns pontos deste filme, mas tudo bem, até aceitei, então vamos continuar.
O menino Rafael finalmente é o escolhido. Acha o grande presente e segredo de toda a trama durante uma ronda matinal pelo lixão. Além de encontrar diversos papéis, fotos, e uma chave, uma quantia aparece para animá-lo e a seu melhor amigo, Gardo, e é aí que acontece a segunda falha, não tão grande quanto a primeira, mas ainda assim um deslize: tudo bem que Rafael é uma criança, e que crianças são curiosas por natureza, mas ele já achou um bom dinheiro até, no meio de todo aquele lixo e falta de perspectiva, já viu que nenhum dos elementos dentro da carteira dizem algo ou fazem algum sentido segundo qualquer lógica previamente conhecida, por que diabos vai se encucar que existe todo um mistério (que rende um filme de duas horas de duração rs) por trás daquilo tudo? Gardo, no entanto, é mais sensato, e, digamos, condizente com seu personagem, e diz para que o amigo se livre daquilo, que esqueça, mas Rafael piamente acredita existir algo a mais e mergulha fundo, sem nenhuma pista, em uma viagem pesada à la Sherlock Holmes, levando Gardo, o braço direito, e Rato, um terceiro amigo que também mora no lixão, juntos na jornada.
Além da inusitada vinda de Hollywood para uma produção em solo nacional, uma das coisas que mais me chamou atenção foi a presença da língua inglesa na obra. É um filme de Stephen Daldry, um diretor natural da Inglaterra, e é óbvio que não foi feito para satisfazer apenas as necessidades nacionais da sétima arte, mas sim porque é uma estória com grande potencial, porém sem o inglês seria difícil a trama passar pelo grande crivo dos cartolas dos estúdios da Universal. É aí que entram Martin Sheen e Rooney Mara: o padre Julliard e a professora Olivia, respectivamente. Trash não acontece como o vencedor do Oscar Slumdog Millionaire, de Danny Boyle, que, em uma Índia paupérrima e longe da realidade, os personagens simplesmente sabem como se comunicar, sem nenhuma aparente dificuldade, na língua do Rei. O padre Julliard e a professora Olivia são peças-chave para a introdução verossímil do inglês no filme. São voluntários no lixão e fazem um trabalho social bem comum de ativistas e missionários estrangeiros em comunidades carentes, principalmente no Rio de Janeiro, e ensinam a língua nas aulas e missas em um centro social da comunidade formada ao redor do aterro sanitário, trazendo à tona um tom espirituoso do vocabulário capenga das crianças que dá ainda mais qualidade de produção ao longa. Não sei quem parabenizar, se aos roteiristas Richard Curtis e Felipe Braga, por adaptarem isto a uma realidade crível, ou o escritor do livro, Andy Mulligan, por ter pensado em algo sutil e essencial ao mesmo tempo, mas este é um ponto altamente positivo para mim.
Confesso que fui ao cinema com grandes expectativas, mas me frustrei muito na primeira meia hora de filme. Havia uma parte que dizia que aquele era o Brasil real, que nós conhecemos, mas muito do que aparece na tela nos primeiros momentos, também, dá a impressão de que é alegoria para impressionar gringo. Há um quê teatral e fantástico demais na situação que é imposta aos meninos, e eu me arrisco a dizer que há até uma certa supervalorização em cima da condição "estar limítrofe à desgraça e ter um caráter invejável", coisa que definitivamente todo brasileiro sabe que infelizmente não é real, ainda mais como neste filme, que, sem nenhuma motivação, o personagem principal nos mostra a utopia moral em pessoa. Mas o plot começa o twist (que trocadilho infame) bem antes do previsto; e é impressionante também como a estória ganha corpo e qualidade com o passar do tempo, fazendo o que parecia ser algo pobre e irreal virar um thriller envolvente que deixa o público atento a cada sequência.
Sobre a direção do Daldry é até difícil de falar. Assim como sobre a edição. Nota 10. Eu fiquei perplexo com a riqueza dos detalhes e a qualidade dos takes. Sem exageros, mas mesmo assim tudo muito minucioso. E a fotografia? A produção? É de impressionar tamanha expressão. Feitas para apaixonar, mais ainda, qualquer já apaixonado pelo Cinema, e também pudera, tem dedo dos melhores profissionais do ramo nisso: a coroada equipe da O2 Produções, do cineasta Fernando Meirelles, que desde Cidade de Deus não parou de encantar a todos com o excelente trabalho e competência, e que ajudou ainda mais para a remição do filme diante dos deslizes do início, permitindo que a obra concatenasse o crucial e ignorasse os neutralizadores da trama, trazendo novamente as fórmulas de sucesso da obra-prima do diretor brasileiro para as telonas do País.
Eu aconselho a ir ao cinema e tirar suas próprias conclusões, mas tenho certeza que você vai gostar do filme e também concordar comigo que: 1 - Apesar de bem parecido, não é um filme tão bom quanto Cidade de Deus. 2 - Não tem um elenco tão envolvido com a estória como o elenco de Cidade de Deus, e é apenas a visão dos estrangeiros sobre um punhado da nossa terra e da nossa história, e isso nunca vai superar o trabalho do Meirelles e do Mantovani. E 3 - Apesar disto tudo, no fim das contas um fato: em se tratando de um inglês visitando uma potência do BRICS para filmagens, Stephen Daldry ganhou de lavada do Show do Milhão do Danny Boyle. É isso, e bom filme.